Opinião – O novo FUNDEB: desafios e esperanças

Por Josué Modesto dos Passos Subrinho
Fonte: Ascom/ Seduc

 

*Josué Modesto dos Passos Subrinho

 

Após cinco anos de tramitação, a proposta de emenda constitucional 15/2015, de autoria da deputada Raquel Muniz, e relatada pela deputada Professora Dorinha, recebeu ampla maioria na votação na Câmara Federal e apoio unânime no Senado. Transformada na Emenda Constitucional nº 108/2020, cujo tema principal é o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais de Educação, FUNDEB, houve a revisão a/ou o acréscimo de diversos tópicos relativos à educação básica. Além de abordar os temas tratados nessa emenda, propomo-nos a delinear alguns dos atores envolvidos nas discussões e especular acerca da ampla aprovação conseguida no Congresso Nacional em um tema que tem o potencial de polarizar discussões, inviabilizando consensos mínimos.

 

Essa foi a melhor notícia para a Educação Pública, em um ano tão sacrificado pelos efeitos da pandemia, mas o resultado não era certo, dado o ambiente de discussões e a omissão do Ministério da Educação em liderar a construção de um consenso em favor do sistema público de ensino.

 

O FUNDEB, aprovado em 2006, é sucessor do FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério), este aprovado em 1996. Ambos foram criados por meio de dispositivos transitórios constitucionais, ou seja, com prazo de validade. A renovação desses fundos envolveu, necessariamente, uma avaliação sobre o papel e desempenho da Educação Pública na construção e reforço de projetos de sociedade.

 

Ao assegurar mecanismos automáticos de financiamento e de distribuição de recursos entre os membros da federação destinados à Educação Pública, esses fundos permitiram, finalmente, a universalização de algumas etapas da educação básica e a fixação de metas ambiciosas de alargamento de atendimento e a perseguição de padrões de qualidade, todos rigorosamente aferidos. Outro aspecto importante foi a qualificação crescente dos docentes, com formação inicial em cursos de licenciatura e o estímulo à estruturação de carreiras profissionais no âmbito do serviço público.

 

Os resultados, especialmente no alcance de padrões de qualidade, foram heterogêneos. Alguns estados e municípios tiveram trajetórias consistentes de melhoria da qualidade de ensino, outros estacionaram em resultados ruins, alguns tiveram trajetórias erráticas e, finalmente, outros mantiveram resultados relativamente bons, mas não apresentaram incremento na qualidade, não obstante o aporte de recursos adicionais.

 

Devemos, portanto, observar a relação entre dois vetores: o vetor 1, o da quantidade de recursos aplicados na educação; e o vetor 2, o da qualidade de ensino obtida com a aplicação desses recursos. Antes devemos reconhecer que essa formulação não é consensual. Há os que questionam a própria construção dos vetores; que não acreditam que é suficiente ter a mensuração dos recursos aplicados em educação, visto que o contexto social das famílias dos estudantes explica muito do desempenho educacional. De forma mais acentuada ainda, recusam os resultados das avaliações padronizadas e, principalmente, de sua vinculação à alocação de recursos.

 

Comecemos então por esse segmento importante que parte de uma recusa em considerar os resultados das avaliações da qualidade de ensino e passou a mensurar as condições de oferta dos sistemas educacionais. Não foi difícil demonstrar que, não obstante o crescimento do dispêndio público em educação nos últimos anos, os professores das redes públicas ainda recebiam salários menores que os demais profissionais de nível superior e, em poucos casos, menos que os professores das redes privadas. Quando observadas as condições de infraestrutura e de fornecimento de insumos, a maioria das redes públicas apresentavam carências evidentes, necessitando de maiores recursos, que aparentemente não chegavam às escolas. A conclusão é que precisamos de mais recursos para a melhoria da educação; e a mensagem implícita, mas não um compromisso, haja vista que outras variáveis interferirão, é que maiores dispêndios gerarão melhores resultados educacionais.

 

Em contrapartida, temos uma visão de que os gastos públicos cresceram de forma consistente e homogênea, mas geraram apenas poucos casos de sucesso com o uso dos recursos disponibilizados. Chegamos à conclusão de que os mecanismos de distribuição automática de recursos para a educação deveriam ser revistos, reforçados os mecanismos de avaliação de desempenho e incentivados os nexos entre desempenho e acesso a recursos adicionais. No limite se comparariam gastos na educação pública com o preço que se obteria com oferta de ensino privado de qualidade assemelhada ou superior, abrindo-se a possibilidade de concorrência entre ofertantes e permitindo-se às famílias a escolha entre escolas públicas e privadas, com matrículas custeadas pelo orçamento público.

 

Uma posição intermediária fazia uma opção prévia pela escola pública, reconhecia a necessidade de continuar a ampliação e garantia de recursos para a estabilidade dos sistemas educacionais públicos, no entanto admitia as deficiências de gestão que levaram a resultados insatisfatórios de desempenho educacional da maioria das redes públicas e a necessidade de mecanismos complementares que premiassem a eficiência, tanto em termos de indicadores educacionais quanto na incorporação dos egressos das camadas sociais mais carentes nas faixas de melhores índices de aprendizagem.

 

Finalmente, o Governo Federal, além da já mencionada ausência do Ministério da Educação na coordenação do diálogo com as tendências presentes no setor educacional e na construção de propostas em conjunto com o Congresso, que caracterizou as ações dos ministros da Educação nos momentos de construção e aprovação do FUNDEF e FUNDEB transitório, tivemos também a presença mais eloquente e direcionada do Ministério da Economia, que parecia ser uma ameaça frontal à lógica de vinculação de recursos públicos. Um dos lemas do ministro era: desvincular, desobrigar e desindexar.

 

Como sabemos, o FUNDEB foi aprovado com ampla maioria nas duas casas do Congresso Nacional e terminou contemplando mais do que se imaginava ser possível inicialmente.

 

Vamos destacar os pontos cruciais da Emenda Constitucional 108/2020, inicialmente apenas em relação ao FUNDEB, e depois outros temas que foram abrigados pela Emenda. Sobre o FUNDEB:

1. Tornou-se permanente, com previsão de revisão;

2. Manteve a complementação de 10% da União às redes estaduais que atualmente a recebem;

3. Aumentou a complementação da União de 10% do total da arrecadação dos fundos estaduais para 23%, a ser alcançada escalonadamente;

4. Ampliou o número de municípios contemplados ao criar o conceito de Valor Aluno Ano Total, calculando o dispêndio total em educação por municípios e fixando um valor mínimo per capta para receber complementação do governo federal, independentemente da média estadual, beneficiando, portanto, os municípios mais pobres em estados com médias de dispêndio em educação relativamente elevadas;

5. Criou novo componente de complementação federal, o VAAR, a ser distribuído, após o preenchimento de certas condições de gestão das redes, de acordo com critérios de desempenho educacional das redes e êxito no combate às desigualdades educacionais originadas em carências sociais. Este novo componente, quando regulamentado, seria de no máximo 2,5% da complementação federal aos fundos estaduais;

6. Estabeleceu incentivo à educação infantil.

 

Vejamos outras medidas contempladas pela Emenda Constitucional:

 

Determinou aos estados a regulamentação da parcela do ICMS aos municípios, cuja distribuição independe do valor agregado gerado no município, tendo como critério o desempenho em indicadores educacionais, a exemplo do que fez o Ceará e vem sendo seguido por outros estados, como forma de incentivar os municípios a perseguirem resultados educacionais.

 

Incorporou o conceito Custo Aluno Qualidade, a ser regulamentado posteriormente, atendendo à demanda de atores políticos que defendem a insuficiência dos recursos atualmente disponibilizados para alcance de padrões de qualidade.

 

Podemos concluir que apenas os atores que advogavam a importância de desvincular, desindexar e desobrigar é que podem realmente se sentir derrotados pela aprovação da Emenda Constitucional 108/2020. Todos os demais foram, de alguma forma, contemplados, visto que:

 

1. Garantiu-se a continuidade de um modelo que assegura recursos públicos crescentes, especialmente em termos per capta, já que a diminuição da população estudantil na educação básica está determinada principalmente pela transição demográfica e, em segundo plano, pela possibilidade de melhoria do fluxo de aprovações;

2. Ampliou-se a contribuição da União até o limite de 23% do total dos fundos estaduais, o que ficou abaixo do pleiteado por diversos agentes, mas acima do que se previa com realismo;

3. Incorporaram-se novos conceitos ao texto constitucional, a exemplo do custo aluno qualidade;

4. Incentivou-se uma maior observação ao desempenho educacional ao prever a criação de mecanismos de incentivos aos municípios;

5. Preservou-se o conceito de piso nacional salarial dos docentes;

6. Direcionaram-se recursos públicos prioritariamente para escolas públicas.

 

De alguma forma a aprovação dessa Emenda Constitucional foi também uma homenagem ao espírito da Constituição de 1988. Fruto de longas negociações políticas, possíveis porque há um regime democrático, resultando em um texto logo e por vezes muito detalhista, com o risco de vetos cruzados em que ninguém se compromete com o texto final, visto que se encontra um dispositivo para justificar o veto total. O resultado, contudo, demonstrando a habilidade da construção política foi a aprovação quase unânime, por mais que cada um encontre um dispositivo a ser criticado, mas não o suficiente para vetar o conjunto.

 

Ao contrário da Constituição de 1988, elaborada sob a pressão do desfazimento do regime autoritário, essa emenda se beneficiou dos efeitos positivos da vinculação de recursos públicos à educação que permitiu ganhos históricos inéditos, como a universalização de algumas etapas da Educação Básica e das críticas diversas, tanto da insuficiência dos recursos, quanto da insuficiência do desempenho educacional na maioria das redes. O resultado final, no meu humilde julgamento, foi o melhor possível dentro da tradição da educação pública brasileira.

 

Na votação do projeto de lei, na Câmara Federal, regulamentando a implementação do FUNDEB surgiram pressões anteriormente anunciadas, transformadas em emendas no sentido de contemplar com recursos do Fundo entidades comunitárias e privadas sem fins lucrativos, ampliando a área de atuação destas, anteriormente restrita à educação infantil, educação especial e educação do campo. Tais emendas foram aprovadas. É compreensível a reação dos segmentos vinculados à educação pública. Esperamos que o Senado recoloque a lei de regulamentação do FUNDEB na bitola fixada pela emenda constitucional, a de ampliação de recursos públicos para a educação pública. Se este processo não for concluídono âmbito do legislativo, as possibilidades de fuga ao leito fixado na Emenda Constitucional 108/2021 seriam ampliadas.

 

Não é educativo glamourizar sonhos não realizados na sua totalidade. Precisamos sim ver o conjunto de ganhos e conquistas da educação pública com a regulamentação do novo FUNDEB. Provavelmente não será a dos sonhos de ninguém, se vista sob o prisma individual. Esperamos, no entanto, que não seja a do pesadelo da maioria e que justifique um repúdio total do que foi construído com tantos esforços pelos educadores, estudantes, militantes da educação, gestores públicos, universidades. Cada segmento ao seu modo, lutando e contribuindo pela melhoria da educação pública brasileira.

 

[*] É secretário de Estado da Educação, do Esporte e da Cultura (Seduc), coordenador da Frente do Novo Fundeb no Conselho Nacional de Secretários de Estado da Educação (Consed) – e foi reitor da Universidade Federal de Sergipe.

 

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